O texto a seguir foi produzido em 27 março de 2006 e publicado em um blog então capitaneado pelo meu carismático amigo Daniel Camargos. O pano de fundo foi um clássico entre Cruzeiro e Atlético pelas semifinais do Campeonato Mineiro daquela temporada.
O primeiro confronto da série terminou com um empate por dois gols. A segunda partida foi disputada sob forte chuva; antecedida por uma semana recheada pela tensão e a tradicional provocação. No entanto, o roteiro dos anos anteriores acabou se repetindo... O Cruzeiro venceu por 2 a 0 e se classificou para a final, superando o Ipatinga na decisão e conquistando mais um campeonato. O Atlético não conquistava um título desde 2000 e aquela pungente derrota foi mais um golpe que atingiu ferozmente a sofrida alma alvinegra.
A música "Construção", composição de Chico Buarque, norteou e ditou todo o texto, marcado pela relação de um casal rendido às dores e prazeres do futebol naquele domingo encharcado de clássico. Ele atleticano: nostálgico, lúdico, apaixonado, sonhador....Ela cruzeirense: bem sucedida, organizada, exigente, racional...
Vamos ao texto...
Amou daquela vez como se fosse a última.
Naquele domingo, como sempre, a eterna esperança driblou a velha angústia e atravessou o horizonte nebuloso, o guiando rumo ao imponente cenário colossal. Sai tristeza, sai amargura...Seis anos, quase seis anos sem aquelas sensações de incontido êxtase profundo. Seis anos de suor, lágrimas despudoradas e algumas efêmeras alegrias que apenas iludiram e mantiveram a tal da inabalável paixão desenfreada. Tudo isso tinha que acabar. Não era possível tamanha frustração. Ele queria vencer, sorrir, ele queria gritar, esquecer as mágoas e não apenas sonhar. Ele estava ávido por uma dose de realidade nas veias. Apenas isso. Realidade nas veias...
Beijou sua mulher como se fosse a última. E cada filho seu como se fosse o único.E atravessou a rua com seu passo tímido.
Simplesmente sucumbiu ao desejo devastador que o dominava com classe e requinte em meio aos empurrões e gritos da multidão
Foi o beijo fatal. Ele ficou estático, o olhar distante. Foi despertado apenas pela indesejável chuva que teimava em também ser protagonista naquela tarde. Era hora de ir. O duelo iria começar. Mas onde estava aquela confiança esperançosa que lhe prometera companhia? Não estava mais lá. Ele pensou
Subiu a construção como se fosse máquina. Ergueu no patamar quatro paredes sólidas. Tijolo com tijolo num desenho mágico. Seus olhos embotados de cimento e lágrima.
Onde estava a maldita confiança de outrora? Ele estava perdido. Subia todos os degraus possíveis, ignorava acenos e sorrisos de desconhecidos que sempre se tornavam velhos amigos naqueles instantes mágicos. Desejava estar sozinho na multidão, desejava ordenar que essa tal angústia procurasse outra morada, de preferência naquela tal direção contrária. Não era para ser assim. Mas era. Tentou resistir. Encheu-se de inesperado brio e ouviu um grito rasgar os céus da cidade.
Todos de pé. Começa o espetáculo. Gladiadores no gramado molhado. A arte faltou, viu? Talvez esteja em alguma viagem romântica pelo túnel do tempo, o certo é que não vem mesmo. Sem chance. Mas para ele não faz falta. O que importa é a raça, o orgulho e a vitória. Com olhos injetados, acompanha cada jogada, cada lance, cada dividida. .Ele é atacado pela esquerda, é desconcertado por um drible impiedoso, um lançamento preciso em sua área, um cabeceio potente e um sutil tapa de luva, uma senhora defesa.
Gritos, muitos gritos... Respira, controla, faz como fazia o Mané, ele implora para um moço que nem lembra o nome. Mas como pedir isso a um João? Melhor esquecer e partir para outra investida construída com cuidado, com carinho, mas sem magia, sem sucesso. Mais disparos, mais oportunidades perdidas. E ela vai e vem num desenho mágico. Ummm...agora é maltratada a coitada, quantas caneladas. Ele se nega a ver, se perde em mais pensamentos nostálgicos e desperta com a dor de um impacto carente de sutileza. O cartão vermelho e o mau presságio. Ele não costuma errar. O silêncio ao seu redor é como uma iminente marcha fúnebre. Decide não acompanhar o lance. Como muitos outros, abaixa a cabeça, fixa o olhar no cimento gelado e aguarda o êxtase adversário. Autoriza o árbitro. A explosão, uma lágrima que cai e um imediato chamado no maldito celular. “Amor, você está aí?”...
Sentou pra descansar como se fosse sábado. Comeu feijão com arroz como fosse um príncipe. Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Intervalo de jogo. Um a zero no placar. Ele não quer saber de mais nada. Chega disso. Vamos falar de política. Será que o Palocci é culpado? Ninguém responde. Cada um está ocupado com seus próprios monólogos delirantes. Melhor comer algo. Sentado em um canto ele contempla seu farto prato plástico e traiçoeiro. É preciso cuidado para manter o equilíbrio. Vá rápido!!! Coma seu feijão, coma seu arroz, beba sua cerveja. Isso, com garfadas frenéticas, goles vorazes, enquanto ela não rola...
Dançou e gargalhou como se ouvisse música. E tropeçou no céu como se fosse um bêbado.
E ela voltou. A confiança voltou, não se sabe porquê. O segundo ato está
E flutuou no ar como se fosse um pássaro. E se acabou no chão feito um pacote flácido.
Agora, decide ousar, atacar com velocidade e decisão, por dentro e pelos flancos. Está envolvendo, está assombrando o inimigo, provocando preocupação, levantando sua voz. O ataque é pela direita, ele encara a marcação e é atingido ferozmente. Cartão vermelho no verde gramado. Explosão de esperança. Ele flutua no ar como se fosse um pássaro. O gol está próximo. É questão de tempo, como diria o velho comentarista que nega a aposentadoria. Bola parada. O levantamento é feito na grande área, a trajetória parece promissora, olhares angustiados por todos os lados, o goleiro salta e faz a defesa. Seguem-se movimentações frenéticas de ambos os lados. Um jogo aberto e recheado de erros. Ele ainda vive seu sonho até que sofre o golpe fatal. Uma inspirada investida adversária pela direita, uma seqüência de dribles e um arremate perfeito, no angulo superior direito do gol. O goleiro está no chão, ele também, feito um pacote flácido.
Agonizou no meio do passeio público. Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.
Os minutos passam. Ele é humilhado por dribles provocantes e reage melancolicamente. Nada mais acontece ao seu redor. Ignorado pela sorte e pela vida, ele agoniza em meio à multidão que se dispersa velozmente. Ouve os gritos na direção contrária e se prende aos pensamentos, aqueles pensamentos repletos de mitos e heróis. O árbitro apita. O espetáculo termina. A multidão finalmente vai embora
Final Atlético 0 x 2 Cruzeiro (Wagner e Francismar)
Semifinal do Campeonato Mineiro, 26 de março de 2006